Libero Badii pensou sua obra como uma comunicação por meio dos materiais. E o material será essa possibilidade de manter um estado anterior às ideias, confiando à arte a existência escorregadia, escorregadia e anterior à palavra.
Libero Badii, Restos Cinco, 1978. Aluminio, papel y cartón 17 x 32 cm. Colección Pampa.
Se com a palavra Badii arruinou muito do que fez, também se permitiu não evitar os lugares comuns. Em Restos cinco, e s/t (arte sinistra), se vê o pretensioso e o precário, e, como muitas de suas esculturas dos anos 50, funciona como uma estrutura de pensamento para os momentos instáveis da arte na Argentina. A matéria é uma possível saída à geografia: evitar a referência, se incomodar com o lugar, com a dependência a um discurso que está ali pressionando para modelar formas tematizadas. Badii abre e sustenta a linha da matéria sinistra, ou seja, aquela que, por ser tão conhecida, se torna estranha e até perigosa. Ali fica claro o que ele pensa para a obra: a possibilidade de dobrar os materiais, até torná-los familiares e aterradores ao mesmo tempo.
Libero Badii, Sin Título (Serie Arte Siniestro), 1978. Madera Policromada 55 x 21 x 21 cm. Colección Pampa.
O sinistro definido por Badii é tão amplo quanto confuso, e sob o conceito de sinistrismo imprime um caráter de movimento a um termo da psicanálise, mas que, em sua concepção, se vincula mais às tradições pré-hispânicas, e à oposição entre a forma conhecida e a forma não-conhecida, ou por conhecer. O sinistro tem múltiplos meios para se apresentar, e um deles é a "técnica do suspense", o demorar a aparição ou concretização. O sinistro é pleitear pela ausência de uma comunicação concreta (“Ouço uma voz, não é nenhuma comunicação técnica, é a voz sinistra”). Para Badii “a realidade americana” era aquilo familiar e desconhecido, e mais além de algumas presenças totêmicas, ele transfere essa capacidade de surpresa aos materiais, como possibilidade do que ele chama de “irradiamento comunicativo”. Isso se gera no trabalho com formas iguais e materiais diferentes, a influência da luz produz “mistério do irradiamento nas formas”. A repetição de motivos, vasos ou máscaras, entre metal, papel ou cartão, vai permitir a ele mostrar, de maneira simples, as variáveis no irradiamento. Em Restos cinco aparece impressa a palavra matéria no centro do objeto, e a pequena caixa-rosto que a contém é guardada por outros dois rostos feitos de papel alumínio. Há um evidenciar dos processos de mudança, cuja referência direta é também a obra de Víctor Grippo, onde se vê não só os materiais, mas também as ferramentas de trabalho, através de processos ativos de transformação.
Libero Badii, Confesiones, 1966. Gentileza Malba. PH: Nicolás Beraza
Entre uma terapia para o ego e uma alquimia dos materiais, Badii está no meio entre Alberto Greco, Liliana Maresca e Mônica Girón, ou ao lado de Emilio Renart. Mas uma das diferenças é que Badii está buscando, nas culturas pré-hispânicas, como muitos da sua geração, uma resposta, com sua distância problemática, a algo “próprio” insatisfeito com as vanguardas, procurando outra norma, ou juntar várias normas para trabalhar a partir de um organismo da contradição. O cartão de uma caixa desmontada, o alumínio de um chocolate, talvez, a pintura por manchas apressadas, são pequenas decisões para tornar frágeis as grandes ideias da arte, os conceitos inatingíveis que Badii nunca vai abandonar. Uma sensibilidade dos materiais para acompanhar a queda das vanguardas.
Libero Badii, Arte siniestro, 1979, Gentileza Malba. PH: Nicolás Beraza
O resto, o que sobra ou transborda, eu penso como o que tira o centro, ou o deixa tonto. Porque o que escapa da forma que o contém, muitas vezes, é uma sobra necessária. Algo semelhante aconteceu com Badii e Yente (Eugenia Crenovich) nas obras que fez no final dos anos 70 e começo dos anos 80: algumas feitas com retalhos de tecidos, outras com isopor (estas últimas feitas com material de embalagem de eletrodomésticos). O que não encontrava função, porque continha algo ou não tinha uso, tinha probabilidades de ser arte.
Emilio Renart também pensou a comunicação como possibilidade terapêutica, e isso significa, como algo que pode ser constantemente resetado. E os meios para chegar à obra, como o espaço de comunicação grupal, além da arte. Ou seja, pensou que a arte abria novos circuitos de comunicação, que de outra maneira não seria possível conhecer, e que essa comunicação é uma instância curativa.
Catálogo de la exposición Libero Badii y el espacio. Instituto Torcuato Di Tella, 1968.
Gentileza Malba. PH: Nicolás Beraza
O sinistrismo de Badii pode ser pensado próximo ao conceito de criatividade de Renart, que desenvolveu como consequência da morte de sua filha Graciela. Desde 1969 Renart criou uma série de “exercícios de convivência” para realizar com sua família, mas que depois aplicou a diferentes grupos de estudantes de arte. Os exercícios coletivos tinham como eixo central o desenho e a palavra, acionando o papel coletivamente através de certas diretrizes coreográficas: rotacionar o suporte, trabalhar de dentro para fora, etc. Tanto a arte sinistra quanto o conceito de criatividade buscaram formas alternativas de comunicação.
Se olharmos a obra de Renart e Badii, longe de categorias e perto de ações terapêuticas, podemos entender que ambos deram as boas-vindas à arte contemporânea. Na comunicação/não-comunicação da obra, por meio das materialidades, entre a construção e destruição das bordas, está essa possibilidade de invenção com os restos, com o que fica ao lado, o que é arrastado para a margem como um simples exemplo de que transformar algo é tocá-lo suavemente.
Santiago Villanueva
Curador de Programas Públicos y Educación del MALBA
Santiago Villanueva (Azul, Argentina, 1990) é artista e curador, vive em Buenos Aires, Argentina.
É curador de Programas Públicos e Educação do MALBA (Museu de Arte Latino americano de Buenos Aires). Foi responsável pela área de influência ampliada do Nuevo Museo Energía de Arte Contemporáneo (La Ene, 2011-2018) e curador do ciclo Bellos Jueves no Museu Nacional de Belas Artes de Buenos Aires (2014-2015). Entre 2016 e 2017 foi curador pedagógico do Museu de Arte Moderno de Buenos Aires. Juntamente com Fernanda Laguna e Rosario Zorraquín coordenou o Spazio de arte em 2019.
Entre alguns de seus livros estão: O surrealismo rosa de hoje (Iván Rosado), Las relaciones mentales. Eduardo Costa (Museu Tamayo), Pintura Montada Primicia. Juan Del Prete (Roldan Moderno), Mariette Lydis (Iván Rosado). Foi co-curador da exposição Traidores los días que huyeron, do artista Roberto Jacoby, no Museu de Arte Contemporâneo de Rosario, Argentina.
Fez parte do grupo editor da revista Mancilla e atualmente é editor da revista Segunda época. É docente na disciplina Estudos Curatoriais da Universidade Nacional das Artes (Argentina).