Sobre Guitarreada (1926), de Florencio Molina Campos

por Laura Isola

Ricardo Güiraldes publicou Don Segundo Sombra, o romance que tentava renovar a literatura gauchesca do século XIX, em 1926, quando o século XX já havia começado com tempo suficiente para mostrar outros aspectos da modernização de Buenos Aires: não apenas da cidade, mas também do campo. Será o texto que conta, em primeira pessoa, a história do aprendizado de Fabio Cáceres: desde os quatorze anos e suas lembranças como órfão até o desfecho e a separação definitiva de Don Segundo, o gaúcho iniciador nas tarefas de doma e arreio na vida rural. A orfandade de Fabio é suprida por esse gaúcho idealizado, seu amado padrasto, que carrega todas as virtudes do homem rural:


O peito era vasto, as articulações ossudas como as de um potro, os pés curtos com um peito de pé como o de uma bolacha, as mãos grossas e couro como casca de peludo. Sua tez índia, seus olhos ligeiramente elevados para as têmporas e pequenos. Para conversar melhor, ele empurrara o chapéu para trás, descobrindo uma franja cortada como crina na altura das sobrancelhas.


Don Segundo se chama Sombra e, ao mesmo tempo em que representa esse modelo essencial do homem do campo, a palavra "sombra" oferece o distanciamento. Ele é o fantasma daquele passado idílico que já não existe mais: é, aos poucos, o apagamento dessa figura, a ponto de um setor da crítica literária tê-lo entendido como “a visão nostálgica e elegíaca dos fazendeiros oligárquicos”. A aristocracia do fim de século, com o projeto modernizador em andamento, o progresso triunfante e o processo migratório em acelerado crescimento, diante da realidade de uma cidade alienante e insuportável, olha para o campo com um olhar apaixonado por aquele espaço intocado, a salvo das mudanças sociais que afetam as cidades. É a nova arcádia sem conflitos, uma espécie de ucronia tanto nas imagens quanto no pensamento.


Florencio Molina Campos (1891-1959), assim como Güiraldes, pinta um campo que, nos anos 20 do século passado, já não existia mais. O processo de modernização havia transformado aquelas vastas extensões de horizonte baixo e imenso em pequenas propriedades agrícolas, as unidades econômicas, e já haviam levado a eletricidade e o trem estava substituindo a carroça. Ele pinta de memória algo que não pode mais ver. Um mundo feliz, sem conflitos. Sem malões ou exércitos. Sem incêndios ou perseguições: “Pinto o gaúcho, o que vi nos anos distantes, quando ainda existiam verdadeiros gaúchos, porque os conheço e os entendo. Dentro de pouco, expulsos pelo progresso e cosmopolitismo, será tarde para copiá-los de forma natural”. Recomendava, ainda: “Diria aos escritores, aos músicos, aos pintores: vão à pampa, aos montes, às serras e recolham nosso imenso tesouro disperso, que ainda está a tempo de salvar o folclore nativo. Triste será quando as futuras gerações nos perguntem o que aconteceu com o gaúcho e o que fizemos para manter a Tradição Nacional!”.


Também não é o gesto dos escritores que “foram para a fazenda” quando a vida na cidade se tornou impossível, como uma Babel do Cone Sul. Molina Campos não se refugia no campo: ele o reinventa. Como diz Luis F. Benedit, pintor e grande estudioso de sua obra, Molina Campos responde à grande pergunta permanente: o que teria acontecido se não tivesse vindo a imigração que veio e se o país tivesse seguido com o modelo anterior? Um mundo anterior à imigração, com sua ética, sua épica, se apaga com o projeto de país europeu: “Em Molina Campos há uma concepção nesse sentido, embora ele não seja xenófobo. A diferença com Martín Fierro é que este texto é desdenhoso com os imigrantes. Também não é que em Molina você vai ver imigrantes em uma tarefa ‘nobre’, como a de amarrar, marcar ou marcar gado. Os que aparecem em suas telas são os habitantes naturais do campo: o vendedor de bugigangas, o comerciante de aguardente ou o fotógrafo, como em ¡Mirá lo pacarito, nena! E assim como estão, eles entram em seu mundo feliz”.


Guitarreada combina vários desses motivos. Por um lado, confirma esse mundo feliz na cena do gaúcho e da china dançando. À maneira dos pintores Juan León Pallière e Prilidiano Pueyrredón, que produziram suas obras mais importantes após a queda de Rosas, o gaúcho, identificado com o rosismo, depois da derrubada do líder, deixou de ser uma ameaça. Sua força de trabalho e seu serviço militar nas linhas de fortalezas e nas campanhas contra os índios se tornaram indispensáveis. As figuras e as situações são idealizadas. As cenas cotidianas de Pallière destacam o ambiente austero e tranquilo da vida no campo, que além disso tem um sentido moral. Em Idílio Criollo (1861), por exemplo, o rancho de palha está em primeiro plano, a postura das figuras reflete a modéstia e as boas maneiras dos apaixonados, e os pais da dama, na penumbra, reforçam o caráter público e claro do relacionamento.


Por outro lado, Molina Campos retoma a geografia que lembra a velha matriz inspirada nas paisagens dos pintores viajantes, aquela divisão de três quartos do espaço para o céu e o horizonte baixo da planície, um céu tranquilo e limpo, uma cena que confirma que o campo (imaginado) ainda pode ser pintado.


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