Sobre El incendio y las vísperas II, Beatriz Guido (1974), de Horacio Zabala

por Gonzalo Aguilar

Aconteceu em setembro de 1972, na cidade de Buenos Aires. Uma patrulha policial irrompeu na Praça Roberto Arlt, localizada entre as ruas Piedras e Rivadavia, e destruiu as obras de arte expostas na mostra Arte e ideologia, CAYC ao ar livre, que havia sido inaugurada no dia anterior. Entre as obras destruídas estava 300 metros de fita preta para enlutamento de uma praça pública, de Horacio Zabala, que comemorava os mortos no massacre de Trelew. Não sabemos se os policiais estavam bem-informados sobre o que estavam fazendo, ou se tinham alguma ideia, mesmo que vaga, sobre arte. Imagino que eles apenas seguiam ordens. Na sua destruição, paradoxalmente, a obra encontrava um dos seus destinos possíveis: questionar o poder ao ponto de se tornar intolerável e exibir com sua presença-ausência o fechamento do espaço público (e a necessidade de ações que o reabrissem ou refundassem). Os fatos de violência política estavam se sucedendo vertiginosamente no continente (a morte de Che Guevara, a repressão ao Cordobazo, o sequestro e assassinato de Aramburu) e a arte podia optar por seguir indiferente com seus próprios linguagens, refugiada em sua autonomia, ou subordinar-se à política e seus slogans. Horacio Zabala optou por uma solução diferente, um terceiro caminho, talvez mais árduo, mas que não se instalava confortavelmente nem na autonomia da arte nem nas consignas unívocas da política. O caminho era o seguinte: uma prática que se alimentasse do conceptualismo e do construtivismo, que empregaria seus conhecimentos de arquiteto e que os fizesse deslizar em uma ironia — um pouco duchampiana, é verdade —, mas sobretudo muito zabaliana. Melhor dito: o que acontece quando objetos-conceitos de longa data histórica e pedagógica (a prisão, o mapa, o jornal) são postos sob a ação e o olhar do sensorial artístico. “A arte — escreveu Zabala no início dos anos 70 — depende do que não é arte”.


El incendio y las vísperas II, Beatriz Guido (1974) faz parte dessa série de experimentações que combinam o conceitual e o visual. Zabala recorre a uma das demandas escolares que eram muito frequentes em outro tempo: “para amanhã, tragam um mapa da América do Sul, no tamanho 3 Kapelusz”. Então, o aluno mais aplicado perguntava: “mapa físico ou político?”. “Físico-político”, era a resposta. Esse é o tipo de mapa que Zabala usa em sua obra. Trata-se de uma imagem de medição objetiva, em escala, produto de um saber científico, mas que também permite licenças poéticas, como o uso de pontos negros diversos para indicar a quantidade de população dos centros urbanos, ou cores para acidentes geográficos e fronteiras. Os relevos são coloridos de verde para as zonas ao nível do mar (que é pintado de azul claro) e o marrom é usado para as montanhas. Trata-se de uma convenção inspirada pelas cores da natureza, embora parcialmente falsa, pois nela existem montanhas verdes e planícies marrons, mas que já nos acostumamos a olhar dessa forma. Zabala pega então esse objeto cotidiano, escolar, trivial, inesperadamente belo (penso nisso agora), e o desloca da aula de Geografia ou de Instrução Cívica para a de Atividades Práticas (como se chamava a disciplina de ensino artístico). Ele então submete o mapa a três operações: dá-lhe um título, desvia sua pedagogia e o entrega à destruição parcial e à catástrofe.


Lido sob as estratégias de Marcel Duchamp, uma referência fundamental para esse artista argentino nascido em 1943, o título ressignifica a obra e produz um ruído ou uma fricção entre a coisa e a palavra. Zabala recorre aqui, como em outras de suas obras, a textos literários. El incendio y las vísperas é um romance de Beatriz Guido publicado em 1964, que critica, a propósito do incêndio no Jockey Club de 1953, tanto o peronismo quanto a elite portenha. O artista torna o incêndio literal e, ao mesmo tempo, dramaticamente simbólico. Ao desvincular o termo “vísceras” da sequência narrativa, ele carrega o termo de presságios: não são mais os dias anteriores ao incêndio (como no romance de Guido), mas a um acontecimento específico que, se nos situarmos na data de composição da peça, não poderia ser outro senão a Revolução que acontecera em Cuba e que parecia se espalhar por todo o continente.


Não creio que o mapa que nos pediam na escola fosse para nos ensinar sobre os acontecimentos que se aproximavam do continente. A obra de Zabala perfura o mapa com fogo e nas bordas da silhueta ficam as negruras de seu passo. O ato e a escolha do início da chama admitem uma leitura política: a silhueta que resta é informe, mas seu centro está na Bolívia. A “teoria do foco” que, de Cuba, Che Guevara e Régis Debray defendiam, a ideia de que uma insurreição teria um efeito contagiante e que era necessário “criar um, dois, três... muitos Vietnãs”, impulsiona o gesto do artista. Embora a teoria do foco tenha se mostrado falsa e até prejudicial, El incendio y las vísperas II, Beatriz Guido tem a virtude de acender no espectador o anseio de rebeldia, de conhecimento e de empatia.


Como pensar a catástrofe, então, que parece ser nossa condição cotidiana? Uma resposta que Zabala dá é cartografá-la. Cartografia e catástrofe: dar-lhe uma dimensão visual e conceitual, física e política, sensorial e sensível, mas também aberta a significados, porque “a arte depende do que não é arte” e, sobretudo, do passar do tempo. Por isso, não devemos subordinar a arte à política do momento, mas abrir o potencial do político que há na arte para que o olhar do espectador faça seu trabalho.


Muitos anos depois, na exposição Una serenidad crispada, realizada na galeria MCMC (Buenos Aires, 2022), a obra foi considerada à luz dos incêndios da Amazônia e de outras partes da América Latina, provocados pelo agronegócio e pelas mudanças climáticas. Um suplemento cultural chegou a chamar Zabala de “um visionário da catástrofe ambiental”. A descrição é absolutamente verdadeira, mas apenas se entendermos por “ambiental” não apenas a natureza, mas também a arte, a política e os tempos que vivemos. Justamente, El incendio y las vísperas II, pela sua abertura de sentido e pela maneira como transforma os objetos, se insere no tempo e admite, até incentiva, novas interpretações.


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