Se tivéssemos uma lente de aumento suficiente para observar a história de relance, poderíamos ver nos golpes de cinzel de Valentín Demarco, que atingem o metal que vai tomando forma, as camadas culturais das quais sua obra é feita em um corte transversal.
Como dialoga, recupera, impugna e repensa a tradição e suas versões, a história da obra de Demarco começou muito antes de seus objetos. Trata-se do relato que começa com a fantasia fundadora: a escola de ourivesaria olavarriense com seus heróis e seus objetos sagrados. E se por trás da fundação de toda tradição sempre há um sonho messiânico, o da ourivesaria olavarriense não é menor do que o da Academia dos primeiros pensadores. Porque, se de fato a escola persiste e triunfa, também é porque existem aqueles como Demarco, que a revitalizam e a recriam, mas que também retornam a certos traços que lhe dão uma forma reconhecível, uma identidade.
Por isso, se a questão da tradição e suas raízes (a invenção da tradição e as invenções que a tradição revela) adquire valor em Demarco, não é porque busque legitimidade em seu relato, mas porque permite que a obra seja lida dentro do diálogo entre uma mão que executa o martelo e empurra uma comunidade criadora. Assim, é possível entender toda a sua produção como uma musculatura que foi se afiando com o tempo, com o tempo de sua formação, mas também com o tempo da história de sua comunidade, a dos prateiros, a dos ourives argentinos, até se constituir como um ofício. E, como todo ofício, supõe colocar no corpo uma memória: pensar no ofício do ourives é, também, remeter-se a um antes e a um destino futuro da obra.
Desde o passado originário pré-hispânico até o luxo gaúcho, para seu patrimônio fundamental (o arreio de cavalo, as esporas, o cinturão, a bomba; instrumentos fundamentais na vida campesina cujo poder de incidência era e é superior ao do ferro), a prata brilha na história nacional antes da colônia e depois dela, até o presente. De modo que se na obra de Demarco é possível ler essa comunidade (a colonial em sua fascinação pela mineração e depois, a nacional do trabalho agropecuário) e seus símbolos, também será legível sua estética (o modo como o barroco italiano é importado no motivo ornamental de algumas peças). Então, em um ínfimo detalhe no qual se trava a fauna ornamental barroca, aparece também o diálogo entre a cultura do gaúcho e o imigrante que funde dois territórios: o dos recém-chegados e o dos estabelecidos.
É certo que a tarefa do ourives bem pode gerar um ofício que produz utensílios, embora não necessariamente um artista conceitual. O que Demarco faz é também um instrumento de reflexão, um discurso. Por isso, o seu trabalho é impensável sem uma discussão sobre a localização da arte contemporânea. O que era possível em outras eras da arte, sua localização no tempo e no espaço, se desmaterializa em Demarco. Nesse objetivo de mostrar a desmaterialização do mundo, ele pode passar do objeto para a instalação, da obra imarcescível para a ação estética, da pesada gravidade da prata ou do bronze para a frágil docilidade da seda.
Sua obra-ação El Arte Contemporáneo es Argentino vincula o material a uma série de conceitos: a perda do centro da arte global, a perda da materialidade da obra e a perda da solidez das palavras; sem esquecer que se trata do instrumento fundamental, o lenço ao vento para dançar um pericón em uma festa gaúcha. Mas Valentín Demarco sabe perfeitamente que a incorporação de um novo conceito em seu trabalho transforma todo o mapa no qual ele se inscreve. Não há peça de seu trabalho que não tenha, pelo menos, um duplo sentido, um double entendre. Uma vez que o “arte” se impôs sobre o objeto, agora ele conversa com seus contemporâneos. Como a complexidade dos diálogos culturais que intersectam seu trabalho é totalmente conceitual, ele pode enunciá-la por meio dos materiais mais diversos: desde a maleabilidade e a rigidez da prata ou do bronze até a docilidade e suavidade da seda.
Se faltava um discurso mais para dissecar as mil camadas geológicas das quais sua obra é feita, estão as manoplas de bronze que olham da fisicalidade masculina do gaúcho ao artista barroco queer da pampa. O índio vago, o gaúcho matreiro, o artista contemporâneo se fazem em uma soma de identidades, que todas contradizem e fazem se chocar entre si: Platero o yo.
As fantasias do universo que foi clandestino do BDSM gay agora se encontram com o arreio do gaúcho que levava em seu nome o insulto e o delito. A clandestinidade do passado pode ser o lugar de encontro dessas vozes e se pode ouvir na voz deformada de José Larralde que recita a palavra “Macho” e um só efeito de olhar faz explodir o sentido de seu canto. Pode-se ver nos símbolos patrióticos que se ordenam em uma série de pequenas peças penduradas que, ao fundir o material para gerar o bronze, fundem também o modo em que pátria ou sexo se misturam na fornalha dos afetos e das emoções: Platero e eu.
Entre esses diálogos que se esculpem na mão de Demarco, suas peças aceitam todas as tradições sem que nenhuma negue a outra. No entanto, esse debate as transformará sem volta, porque ao colocar o cinzel sobre a chapa e chegar à peça no cruzamento dos discursos, é possível ouvir o brilho de sua voz dizendo: “eu os amo a todos”.